[Resenhas] A Noite das Bruxas

Agatha Christie é mestra em fornecer condições para que seus leitores mergulhem em suas tramas. Para isso, se existe algo (entre tantas características incríveis) que Agatha nos oferece com muita firmeza é aquilo que eu chamo de Ambientação. Ela fornece subsídios muito claros ao leitor para que ele entenda bem em que contexto aqueles acontecimentos ocorrem e para que embarque com toda força no mistério proposto.

Para me preparar para assistir ao terceiro filme de Kenneth Branagh personificando Poirot, reli o livro dias antes, como fiz com seus longas anteriores. Essas releituras são importantes para deixar “frescas” na mente as intenções da autora e as características das personagens e do local onde cada crime acontece, afinal elas são necessárias para que possamos desvendar o mistério. Ainda assim, é sempre bom lembrar que nada obriga que a produção cinematográfica seja 100% fiel ao livro, e portanto nunca espere isso, mas conseguir reconhecer a obra literária original é o mínimo necessário para que uma adaptação possa ter realmente seu valor.

Para começo de conversa, em “A Noite das Bruxas”, um de seus melhores livros, Agatha deixa claro desde as primeiras páginas que tudo acontece em Woodleigh Common, uma pequena cidade da Inglaterra (que, ainda que fictícia, fica próximo a Medchester, e esta, por sinal, aparece em dois outros livros da autora). Além disso, descrito desde o primeiro parágrafo do livro, o assassinato que rege a trama acontece numa festa de Halloween entre colegiais, tudo de uma forma bastante pueril, sem “dramas” ou “assombrações”. Isso justifica inclusive o título que o livro de Agatha Christie recebeu em Portugal na época de seu lançamento: “Poirot e o Encontro Juvenil”. Woodleigh não é uma megalópole, é uma localidade ainda pequena mas em expansão (havia até “um cemitério construído nos últimos dez anos, presumivelmente para acompanhar a crescente importância de Woodleigh como cidade”), onde todas essas pessoas — jovens e adultos — se conhecem: todos sabem sobre todos, as notícias correm… Há ainda a Pedreira (e seu Bosque, e sua Mansão), essenciais na trama. Com as características que Agatha nos fornece, cada leitor consegue criar em sua cabeça imagens particulares desses lugares importantes, incluindo também a casa onde acontece a festa de Halloween, a biblioteca onde um testamento é alterado, enfim…

Nas adaptações anteriores de Branagh, ficava claro que ele deturpou diversos trechos dos livros, criou e alterou personagens e houve um caprichado malabarismo para tentar “parecer” com as obras originais de Agatha; mesmo com várias “licenças poéticas”, muitas difíceis de engolir, “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017) e “Morte no Nilo” (2022) de fato remetiam aos clássicos da autora, mantendo pelo menos a “ambientação” supracitada bastante próxima à trama agathachristiana. Em “A Noite das Bruxas”, Branagh simplesmente já começa ignorando o livro solenemente, embora use os nomes de diversas personagens e, mais para frente, faça citações a algumas passagens importantes. Para começar, não há a cidadezinha Woodleigh: a história se passa em Veneza (daí o título original do filme em inglês, “A Haunting in Venice”), e Poirot é um detetive aposentado, “recluso na Itália”, mas que “anda com um guarda-costas” (oi?).

Michelle Yeoh

Na obra original, uma das últimas escritas por Agatha, o mistério parece bastante intrincado, mas a solução final, embora seja difícil para o leitor solucionar, é relativamente “pé no chão”. O filme faz um caminho diferente: uma história que não parece tão incomum (alguém se suicidou… ops… suicídio em “A Noite das Bruxas”?) se mostra logo em seguida um caso sobrenatural, de contornos quase fantasmagóricos… À primeira vista, parece de fato que Branagh e o roteirista Michael Green mal leram o livro com atenção, ou então pegaram na biblioteca um exemplar de “O Cavalo Amarelo” (e os fãs de Agatha irão entender esta referência) e “deram uma confundida”… Bizarro.

Transformar Joyce Reynolds, a adolescente (eu disse adolescente) que é a chave da trama (uma estudante “comum”, conhecida simplesmente como uma menina mentirosa), em uma médium adulta, madura e performática (vivida pela sempre excelente Michelle Yeoh) é absolutamente absurdo e inadmissível. Faltam o frescor e a alegria do contexto “escolar” e juvenil do livro, essenciais ao mistério original: no filme, a festa é noturna, mascarada, “veneziana”.

Tina Fey

O elenco, é preciso dizer, é ótimo, embora as personagens sejam por demais chorosas, quase “perdidas”. Menção honrosa para Tina Fey que, ainda que não seja a Ariadne Oliver dos sonhos de muitos fãs, defende com garra a personagem que aparece em diversas obras de Agatha: Tina rouba a cena na primeira metade do longa; depois o roteiro “esquece” um pouco a personagem, infelizmente. A “exaltada feminista de vasta quantidade de cabelos grisalhos rebeldes” (como é anunciada em “Cartas na Mesa”), a “epicurista que encara a vida com amor e simpatia” (em “Os Elefantes Não Esquecem”), a mesma mulher “de seios abundantes” (como é descrita em “A Noite das Bruxas” — mas aí Tina “dançou”), sempre louca por maçãs, é uma das melhores personagens do filme (e de toda a obra de Agatha). As maçãs, felizmente, foram lembradas por Branagh, tanto na introdução de Ariadne Oliver quanto numa versão alternativa da cena da bacia, desta vez protagonizada por Poirot.

Poirot, por sinal, recebeu de Branagh neste terceiro filme um tom ligeiramente diferente, mais tranquilo e menos “atlético” como em algumas cenas bizarras dos dois primeiros longas: ponto para o ator (e diretor). Talvez seja resultado do timing da trama: às vezes quase arrastada, mais lenta de propósito, servindo para gerar a atmosfera soturna, em alguns momentos “virando um thriller”. Mesmo sendo um período de Halloween, que felizmente não foi esquecido no filme (embora metamorfoseado), o livro era mais “solar”, e os acontecimentos rolavam em vários lugares, muitos “abertos”, diurnos. O longa acontece todo num mesmo castelo, tudo bem escuro, noturno, assustador.

Talvez a melhor solução teria sido desvincular de vez a versão de Branagh do livro de Agatha, criando de fato uma obra nova, não utilizando deturpadamente os nomes das personagens. Rowena Drake (Kelly Reilly) está no filme, mas esta não é, como descreve o livro, “uma mulher alta, simpática, de quarenta e tantos anos de idade; seus cabelos dourados estavam ligeiramente grisalhos; seus olhos eram de um azul brilhante; e nela tudo refletia habilidade e competência” (ou, nas palavras de Ariadne, “o tipo da mulher mandona, que gosta de controlar tudo, coisas e pessoas com eficiência”). No filme, Rowena é apresentada como uma mãe que derrama sofrimento e lágrimas por causa da filha Alicia… epa, que filha é essa que inventaram, jizuismariajosé? E a filha tem um “ex-noivo”, Max (Kyle Allen), sem falar na governanta da casa, Olga Seminoff (Camille Cottin, ótima) e em Dr. Ferrier (Jamie Dornan, de “Cinquenta Tons de Cinza”), médico que tratou de Alicia “até seu último minuto”, mentalmente transtornado pela perda da paciente (e por seu histórico de guerra… que guerra???).

Eis outra transformação importante: o filme se passa em 1947, no pós-guerra, enquanto o livro está totalmente com os pés fincados no final dos anos 60, deixando para trás o velho ditafone (lembram?) das primeiras obras, antenado com o início das revoluções tecnológicas que geraram, neste livro, algumas citações curiosas de Agatha a… computadores (“Sabe com que o senhor se parece? Com um computador. O senhor está se programando, sabe. Não é assim que dizem? Quero dizer que ingere essas coisas durante o dia todo e depois verá o que resulta de tudo isso.”, como Ariadne descreve Poirot no capítulo 6).

Jude Hill

E há um Leopold que, no filme, é filho do tal doutor (nada a ver) e chega vivo até o final do filme (idem). Seu intérprete, o menino Jude Hill, que se destacou pouco tempo atrás em “Belfast”, do mesmo Branagh, brilha intensamente. Senti falta de Judith Butler (Ariadne Oliver entra nesta trama literária por causa dessa personagem), e cadê o Inspetor Spence e sua irmã Elspeth? Especialmente, onde estão Michael Garfield e Miranda, essenciais na trama original? Lamento informar, Branagh, mas sem Michael e Miranda não existe “A Noite das Bruxas” de fato, bebê; a relação entre os dois no decorrer do livro é uma das coisas mais interessantes da obra, e isso não existe no filme, tal como a Pedreira…

“Ainnnn mas é uma adaptação”, não, não me venham com essa. É como se o incrível Joãosinho Trinta fosse chamado para interpretar um abajur lilás numa peça em sânscrito na língua de sinais com o título “Romeu e Julieta, Tá, Tá me Chamando”, onde o casal título é um vendedor de goiabadas que desce pelas tranças da amada que mora na torre Eiffel…

“Ainnnn mas não tem nada de bom no filme?”. Tem sim e, ainda que eu ainda não tenha me convencido disso (assistirei novamente, claro), ouso afirmar que é o melhor filme da trilogia. A vibe é bem diferente dos anteriores, é verdade, e isso conta positivamente, e uma vez mais a produção é bastante caprichada, o filme é bem dirigido, as atuações são boas — especialmente Tina Fey e Jude Hill — e apresenta uma fotografia (de Haris Zambarloukos) deslumbrante, além da eficiente direção de arte e dos efeitos especiais. Diferente de “Morte no Nilo”, onde a trilha sonora mal dava pro gasto, neste novo filme ela funciona muito bem. E eu vou, sim, elogiar o roteiro, afinal a resolução da trama é bem interessante e eu gostei do final.

Só não é “A Noite das Bruxas”.

Pois é, “não dá mais”, gostaria de dizer, mas não digo: claro que, por ossos do ofício e por meu amor a Agatha, continuarei assistindo às próximas adaptações do diretor, caso ele ainda ouse cometê-las (não há cena pós-crédito para anunciar uma quarta produção). Mas, se Branagh sentasse comigo numa mesa de bar, eu diria que é melhor pensá-las, repito, como obras originais de uma imaginação fértil onde o diretor e o roteirista apenas evocam um Poirot estranho com seu bigode avantajado numa trama inédita. Se neste “A Noite das Bruxas” de 2023 não há “credibilidade adaptativa”, se a opção foi praticamente criar uma história nova, quase gerada do zero, seria melhor então assumir isso de vez. “A Noite das Bruxas” das telonas pode até ser “A Haunting in Venice” para Branagh e para o cinema atual, mas jamais será “Hallowe’en Party”, aquele excelente livro lançado em 1969 por Agatha Christie, e jamais poderá ser chamado de “uma história clássica de Hercule Poirot”: seria uma gigantesca heresia à obra original da Dama do Mistério. Não forcem a barra.

Em tempo: somente após ter visto o filme e escrito estes primeiros parágrafos, resolvi pesquisar algumas das críticas, e alguns dos trechos me deixaram escalafobetizado. Eu até escolhi a dedo alguns parágrafos para citar aqui mas, em respeito aos críticos profissionais, não os reproduzirei. Para uma destas matérias, porém, Agatha estaria “satisfeita vendo sua história em boas mãos”, do que discordo: acho que ela deve estar é se contorcendo no túmulo. Em outra resenha, simplesmente me pareceu que é melhor fingirmos que a história original não existe e nos deslumbrarmos somente com a mega produção cinematográfica em si: importam somente a direção e as interpretações. Só para citar uma terceira: nessa, o jornalista diz, em outras palavras, que ninguém acha necessário ler a obra original somente para perceber que o filme não tem nada a ver com o livro, não importa se a trama se desenvolve de forma diferente; é preciso que os diálogos entre os personagens sejam “coerentes”… Então tá, né? Bye, bye, Jane Austen, vou fazer meu “Orgulho e Pós-conceito” sem ligar para você, querida, vou mandar um “inspirado em” nos créditos, tchau e benção.

De qualquer forma, fã da escritora ou não, compre seu ingresso e, se preferir, esqueça que é uma obra baseada em Agatha Christie, ou era para ser. Apenas curta a caprichada produção e, em meio aos sustos e surpresas, divirta-se. Cinema é entretenimento e vai ser sempre a melhor diversão.

Tommy Beresford

~ por Tommy Beresford em setembro, 14 2023.

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