[Resenhas] Coringa
Uma das maiores qualidades de “Coringa”, o longa de 2019 baseado no clássico personagem dos quadrinhos de Batman, é justamente não ser um “filme de quadrinhos” — e nada contra os (ótimos) filmes sobre batalhas entre vilões e seres de extremos poderes e todas as espaçosideralizações do gênero que povoam a sala escura nas últimas décadas. O fato é que o diretor Todd Philips criou um longa de excelência numa Gotham bem real, bem pé no chão, e com muito da problemática com a qual nosso século XXI, quase década de 2020 já, (sobre)vive nas linhas e entrelinhas de um planeta cada vez mais complexo.
Ao mesmo tempo, “Coringa” tem um clima antigo (a história é passada bem no início dos anos 1980, vide o filme em cartaz no cinema de uma das cenas finais, “Um Tiro na Noite”, lançado em 1981). A fotografia sem excessos e a caprichada direção de arte são muito bem conectadas para nos oferecer algo quase “palpável”. Até esquecemos que Gotham é uma invenção da ficção: a Gotham de Todd Philips existe, poderíamos ali estar se tivéssemos vivido naquele tempo. Um “realismo antigo”, se me permitem uma expressão estranha, de uma enorme qualidade. Durante a trama, aliás, não há qualquer citação a qualquer outro herói ou vilão fictício: definitivamente, “Coringa” não é um filme de super-heróis, que fique claro para o espectador incauto.
O trabalho do diretor e também roteirista é impressionante — e surpreendente, se pensarmos que seu maior destaque é o (ótimo) “Se Beber, Não Case”, que nada tem a ver com a obra atual (aliás, Bradley Cooper também é um dos produtores). A escolha de Robert De Niro, numa interpretação marcante como o apresentador Murray Franklin, é uma deliciosa “ironia cinematográfica”, se pensarmos que aqui e ali existe um clima bem “Taxi Driver”, inspiração que me pareceu bem forte na trama, e também “O Rei da Comédia”, onde De Niro vivia um comediante aspirante a aparecer em um talk show: em “Coringa”, ele está do outro lado “do balcão”, digamos. De Niro está excelente.
Mas a principal sensação, ao sair da sala de cinema, é a de uma certeza. Certeza de que Joaquin Phoenix, sempre excelente em tantos outros ótimos papéis anteriores, “precisa” ganhar o Oscar. Este é certamente seu maior papel, e ele agarrou a oportunidade de compor um personagem previamente tão marcante em tantos outros tons (de um saudosamente histriônico Cesar Romero ao incrível e postumamente oscarizado Heath Leadger, passando por Jack Nicholson e Jared Leto, entre outros, alguns muito estranhos). Se tudo é muito real na Gotham do filme, o Joker de Joaquin Phoenix é ainda mais, desde o “afeto pseudobulbar”, o transtorno da expressão emocional involuntária que acomete Arthur Fleck, que ri em horas erradas e/ou em uma intensidade desmedida para o acontecimento. A interpretação de Phoenix entra para o hall dos grandes vilões do cinema. Melhor nem tentar descrever: obrigatório assistir.
A Warner deu um presente ao diretor quando não exigiu dele que o filme fosse baseado em alguma história clássica de Batman: é o cinema dos anos 1970 e 1980 a maior inspiração do roteiro, e não simplesmente uma trama pré-existente dos quadrinhos, ainda que lá estejam as menções aos Waynes e a clássica tragédia da vida de Bruce — mas não espere qualquer foco no menino. A força do que seu pai representa à cidade é muito mais importante à trama e faz o elo mais que perfeito entre uma Gotham de quase quarenta anos atrás — envolta nas incertezas e no caos — e a época atual.
Para mim, a cena mais emblemática do filme talvez seja a que Phoenix contracena com De Niro, dialogando no sofá do programa de TV: emocionante o embate dos dois em cena. Quanto à violência de algumas cenas, não existe motivo para polemiquetas: não há nada no filme que seja mais chocante do que temos visto no noticiário mundial todos os dias.
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza e com citações a outros filmes clássicos (com cenas de Charles Chaplin a Fred Astaire), “Coringa” tem todas as qualidades para ser uma forte aposta para diversas categorias do Oscar a ser entregue em 2020. Mas, acima de tudo e independente de premiações, é um filme obrigatório: um dos melhores filmes dos últimos anos com uma das melhores interpretações dos últimos anos. Não percam.
Tommy Beresford
Um excelente filme de ficção e, por isso mesmo, bom. Não dá para comparar a violência que exala da tela com o que acontece nesse mundo real. Coringa pode ser qualquer coisa conforme a cabeça louca do roteirista da vez…