[Resenhas] Elis

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Elis Regina foi, é e sempre será uma artista necessária. Mais do que uma cantora de talento inegável, era uma mulher intensa, uma performer impressionante, uma artista sensível às novas composições, que unia técnica e emoção como ninguém, uma pessoa de opinião, exposta, visceral. Um filme sobre um ser humano como ela também é necessário, até demorou demais, e por gerar expectativa e ter tanta coisa a abordar sobre a (curta, enorme) carreira da incrível Elis poderia naufragar ou ser um estrondoso sucesso. O que eu não esperava é que acabasse ficando no meio do caminho — lugar que Elis jamais ocupou.

É um filme curioso, pois justamente onde poderia ter sido um grande fiasco o filme mostra escolhas inteligentes e gera sequências emocionantes, e onde poderia ter brilhado acaba se tornando decepcionante. A melhor escolha foi a de manter as canções na voz original. Isso evita a comparação e fez com que a atriz que interpreta a protagonista pudesse se sentir mais segura para apenas interpretar Elis, e não ter a tensão de realizar uma performance vocal que jamais ficaria no nível da cantora consagrada como “a maior do país”. Andréia Horta se aproveitou muito bem desta sábia decisão e realiza performances incríveis, como na cena de “Cinema Olímpia” e em “Velha Roupa Colorida”, que passa durante os créditos. Mesmo na cena mais difícil, a do clássico “Atrás da Porta”, a atriz arranca uma lágrima a mais da plateia, já inebriada pela gravação antológica da canção de Chico Buarque.

O elenco é irregular. Andréia Horta cresce com a maturidade da estrela: a partir do emblemático corte de cabelo de Elis (e seu posterior casamento com Ronaldo Bôscoli), Andréia de fato toma para si o papel, o que não acontecera na primeira meia hora do longa, prejudicada pela sequência cansativa demais da chegada dela ao sudeste. Mas a impressão que dá é que Andréia luta com o diretor em relação às cores da interpretação: com closes exagerados, o filme por vezes “berra” para o público algo como “olha como ela é parecida”, mas Andréia não tem a intenção de ser uma cópia da figura real, e nisso ela acerta tremendamente. Além da protagonista, o grande destaque do filme é Gustavo Machado, que inteligentemente optou por não procurar imitar Bôscoli e, numa bela atuação, passa sempre veracidade. Lucio Mauro Filho e Caco Ciocler, outros dois excelentes atores, não comprometem, mas ficam no meio do caminho ao optarem por focar em características específicas de seus personagens — Miéle e César Camargo Mariano, respectivamente — e com isso não conseguem fugir da caricatura. Júlio Andrade está muito bem como o inesquecível Lennie Dale, mas o rico papel é mal explorado pela produção.

Os grandes defeitos estão justamente num roteiro que não mostra de fato a força de Elis (ao contrário, por vezes parece submissa e passiva), e na montagem às vezes mal produzida seja de contexto, seja de cenários mesmo. Sobre Elis, foram lançadas duas biografias incríveis: “Furacão Elis” (1985, relançada em 2006), de Regina Echeverria, e “Nada Será Como Antes” (2015), de Julio Maria. Mas a impressão que temos é que os roteiristas Luiz Bolognesi, Vera Egito e Hugo Prata (diretor do filme) beberam pouco dessas ricas fontes. A supracitada sequência da chegada de Elis ao Rio é muito longa, poderia ser reduzida para que sobrasse mais tempo para tantos outros fatos tão importantes que nem foram citados. É o mesmo problema das cenas referentes ao regime militar, situação delicada e mal compreendida na época que poderia ter sido citada de forma mais enxuta: a impressão que passa é que o filme quer justificar com excesso de detalhes o que Elis foi obrigada a passar.

Além disso, muita coisa ficou de fora. Onde está a mãe de Elis, que mal é citada no filme? Nem Tom Jobim pôde ser retratado, onde está a emblemática e mundial “Águas de Março”? Em diversos momentos, a impressão que se tem é que o longa parece que não quer entrar fundo em nenhuma ferida ou polêmica, como se fora tão somente uma sequências de fatos escolhidos ao acaso a partir de uma enorme lista. Especialmente na primeira metade do longa, algumas falas chegam a ser constrangedoras: qualquer ser humano de bom senso percebe que algumas frases não teriam sido faladas de forma tão clichê numa mesa de bar ou num estúdio. A verdadeira relação com Nelson Motta fica camuflada: e por quê, se já é notória? A inclusão de Henfil, porém, foi acertada, tanto na consequência da apresentação para o exército quanto na posterior gravação de “O Bêbado e a Equilibrista”. Já as cenas de sexo são totalmente desnecessárias, e o cenário da TV Record é constrangedor… Aliás, os grandes festivais e todo o conflito entre ditadura e resistência musical são citados apenas de forma superficial: tudo (a)parece meio “de raspão”, o filme pouco mergulha no contexto de uma época que, considerando a curta vida da estrela, nem foi tão extensa assim, mas artisticamente riquíssima.

É óbvio que qualquer filme de qualquer duração seria insuficiente, mas Elis Regina merecia mais, e mesmo a excelente peça de teatro “Elis, A Musical”, aplaudida por milhares de pessoas com Laila Garin no elenco, foi bem mais profunda e abrangente. Falta mais Elis nos festivais, falta mais foco na carreira tão profícua da artista e em suas relações com os compositores que lançou, por exemplo. Falta mostrar pelo menos um pouquinho mais sobre o cenário musical em torno de Elis na época. Ao escrever esta resenha, me lembro do incrível “Uma Noite em 67“, extremamente bem sucedido em nos transmitir esse sentimento, essa aura musical condensada, no caso do documentário, em apenas uma noite. “Dois Filhos de Francisco” é um ótimo exemplo de cinebiografia de excelência, e mesmo o recente e apaixonante “Eu Sou Carlos Imperial” e o ótimo filme sobre Tim Maia foram mais eficientes, isso sem citar filmes que, se não foram brilhantes, serão sempre lembrados, os mais antigos como “Cazuza – O Tempo Não Para” e “Gonzaga, de Pai para Filho“.

Ainda assim, o filme “Elis” emociona, e não poderia ser diferente… E também pode servir (sonho meu, sonho meu) como chamariz para que as novas gerações — tão carentes de ídolos realmente com conteúdo a dizer e a cantar — possam procurar conhecê-la mais a fundo ao sair do cinema. Chorei baldes em vários momentos, desde a abertura, com o clássico “Como Nossos Pais”, até o final dos créditos. Não deixem de assistir, indo aos cinemas não como cinéfilos cheios de expectativas, não como críticos de cinema, nem mesmo como músicos ou amantes do canto, mas como seres sensíveis à obra e à vida de uma artista sem dúvida inesquecível.

Tommy Beresford

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~ por Tommy Beresford em dezembro, 06 2016.

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