[Resenhas] Cássia Eller
Quando Dalva de Oliveira morreu, eu mal tinha saído das fraldas. Quando Elis faleceu, eu nem tinha entrado na adolescência ainda. Quando Elizeth morreu, eu estava em franca ascensão na vida acadêmica, tentando ser bem sucedido numa difícil universidade, e ainda com as referências musicais que vinham da minha vida não adulta. Ainda assim, com o passar do tempo, fui pesquisando a carreira destas e de outras grandes cantoras (e cantores) que não necessariamente povoaram minha vida pregressa, e me tornei admirador destes grandes artistas, não somente por suas admiráveis vozes, mas por sua grandiosidade de repertório.
Com Cássia Eller foi diferente. Aprendi a ser seu fã muitos anos antes de seu falecimento. E, portanto, quando essa grande cantora se foi, realmente senti muito sua partida, como até hoje sinto sua falta. Trabalho ouvindo rádio, e somente hoje suas canções já tocaram pelo menos três vezes, mais de treze anos depois de sua morte, prova de que suas escolhas foram realmente para sempre.
E eis que surgiu a notícia sobre o filme… Sou sempre contra expectativas cinematográficas, como canso de repetir em minhas humildes resenhas. Mas foi inevitável aguardar ardentemente a estreia do documentário de Paulo Henrique Fontenelle (elogiado por “Loki” e “Dossiê Jango”) e a espera pela estreia, que finalmente aconteceu no final de janeiro de 2015, me pareceu uma eternidade. Desde o trailer eu já me emocionava. A primeira imagem, da primeira cena, já me arrepiou. Impossível escrever uma resenha que não seja de tal forma emocional.
Não é apenas um registro de uma carreira impressionante. Não é somente uma colagem de momentos da vida pessoal da mãe de Francisco, esposa de Maria Eugênia e mulher tão amada e de tantos amores. Há ali de certa forma uma radiografia — bem dirigida, com roteiro enxuto e excelente montagem — de toda uma época da música brasileira onde Cássia reinava com tamanha unanimidade justamente porque não havia algo semelhante… e com a morte dela, não se repetiu até este início de 2015.
Em um dos melhores depoimentos do filme, entre tantos maravilhosos, Oswaldo Montenegro resume bem a trajetória da cantora: “Cássia ‘desimplicou’ o Brasil”. O filme mostra bem a diversidade do que Cassia ‘desimplicava’ não somente com seu repertório mas com seu modo de ver a própria carreira, trazendo à tona eventos de todo tipo dos quais Cássia participou, incluindo os pequenos shows em localidades inimagináveis onde Cássia cantava sem qualquer aviso prévio mesmo quando já estava famosa: são deliciosas as cenas, amadoras, dos palcos quase inexistentes em condições de puro prazer para quem ali se apresentava. Mas há, claro, o show histórico no Rock In Rio 3 (2001), onde tocou “Smell Like Teen Spirit” do Nirvana, com as incríveis histórias de bastidores… Estão ali também os imperdíveis bastidores de seu hoje clássico “Acústico MTV”, as cenas fascinantes do início de sua carreira com Marcelo Saback, além de pungentes depoimentos de colegas, especialmente Zélia Duncan e Nando Reis, e também de familiares e amigos da cantora.
Mas sem dúvida o filme cresce em emoção na meia hora final quando mesmo nós, já tão sabedores do desfecho, ficamos em estado de tensão porque estão próximos “os minutos finais” da artista. Tudo o que envolveu a morte da cantora – a fase imediatamente anterior, a sanha da imprensa em dar a notícia e, especialmente, a disputa judicial em torno do filho de Cássia e Maria Eugênia… Impossível não chorar, mas não por qualquer opção piegas do filme: há muita sinceridade em tudo ali. E eis que no final (e que bom que somente no final, e não explorado por todo o longa) surge Chicão, já adulto… nem vou falar da comoção que ele causa ao aparecer: vocês vão entender porque…
Lembrei agora de um dos versos de uma de suas canções mais famosas, “Malandragem” (que permite uma participação especialíssima de Angela Ro Ro explicando porque não gravara a canção de Cazuza e Frejat): “Quem sabe eu ainda sou uma garotinha…” Apesar de todo o envolvimento com drogas, álcool e as ciladas que a fama produz, no fundo Cássia viveu como uma garotinha, tímida e bastante honesta com seu modo acanhado, frágil e delicado de ser e lidar com o sucesso, que surpreende, sim, tanta gente quando comparado com a enorme leoa em cena: o filme consegue trafegar entre essas suas duas facetas mostrando que era uma única Cássia, inteira, gigante, sempre.
É extremamente saudável que Paulo Henrique Fontenelle não tenha omitido questões ainda [!] consideradas polêmicas: a homossexualidade, o pluriamor e os vários namoros de Cassia, a luta pela guarda de Francisco, a questão da bebida e das drogas. A paternidade de Francisco, as entrevistas “sem jeito” que Cassia dava à TV, tudo está de alguma forma representado no filme. Da mesma forma, não se omitiu o alarde da imprensa — incluídas aí capa de Veja, matéria no Fantástico, citados e mostrados no longa — antecipando uma causa mortis por overdose que não existiu. É impressionante pensar que tudo isso ocorreu há pouco mais de dez anos, é incrível ver o despreparo de uns e a maldade de outros, todos parte de uma imprensa que só quer saber de lucrar por meio de sensacionalismo.
Toda essa abrangência tem uma explicação. Lembro de uma entrevista que o diretor concedeu na época do Festival do Rio 2014, quando o filme foi exibido pela primeira vez (outubro de 2014), em que ele dizia que Maria Eugênia somente havia aceitado que o longa fosse produzido por ele (depois de outros convites que ela já havia recebido) desde que todos os lados da vida de Cássia fossem abordados. Paulo dizia também que, a cada entrevista ou depoimento colhidos, toda a equipe terminava extremamente emocionada, numa jornada que, nas palavras do diretor, mudou sua vida e a de todos da equipe. Se, durante o processo técnico da produção, a emoção já jorrava, imagine agora para o espectador, vendo o trabalho já pronto, bem cuidado, cheio de detalhes e novas informações sobre esta artista tão amada ?
Ainda assim, emoções à parte, talvez o que mais tenha me impressionado é que, ainda que isso não seja explicitamente falado em nenhum momento, há a clara percepção de que Cássia não somente foi única, mas tinha um talento que não dava margens a dúvidas. Cássia pode ter sido polêmica em muitos momentos, mas por toda a sua curta carreira sempre foi visível que sua voz, suas escolhas de repertório e a diversidade bem executada que ela nos entregava com tanta intensidade a cada novo disco sempre resultaram em qualidade e se mostravam uma enorme exceção a uma MPB que, no final dos anos 90, já combalia em meio à crescente mediocridade. E, entre toda essa turbulência de muitos shows, sucesso e polêmicas, havia ali um ser humano incrível, cheio de defeitos, carências, incompreensões, mas sinceridade e amor aos borbotões.
Desnecessário dizer que, além de tudo isso, o filme ainda tem Cássia cantando (Legião, Piaf, Chico, tudo…) e nos arrepiando a cada lembrança de seus sucessos… Como disse (novamente) Oswaldo Montenegro, desta vez muito antes do filme,”Ela parecia ser compositora de qualquer música que cantasse”… Fato. Como não amar ?
Cássia (me) faz muita falta, mas agora temos um belo filme em cartaz que mais tarde será transformado em um DVD onde poderemos rever, sempre que sentirmos saudade dela, o relicário imenso desse amor. Não percam.
Tommy Beresford
Uma ótima cinebiografia que faz jus ao talento da grande cantora pop.
Maravilha, Tommy!!.. Fiquei muito emocionada.. 😍😍😍😍